Susi do pescoço duro

Sarah Quines
3 min readDec 22, 2019

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Dia desses me deparei com um anúncio do Mercado Livre: “Boneca Susi pescoço duro raridade — frete grátis”. Isso me lembrou da primeira Susi que eu ganhei. Ela vinha com a roupa de jogadora da seleção do Brasil, era época da Copa do Mundo da França. Ela era morena (como eu) e tinha um corpo mais humanamente possível do que o de uma Barbie.

A caixa da Susi estava exposta na prateleira do Nacional, e eu pedi pra minha mãe, mesmo sabendo que não era hábito ganhar presente fora de alguma data especial. Ela fez um acordo comigo: se a cliente que devia pra ela pagasse a parcela aquele dia, eu ganhava a Susi. Foi uma jogada estratégica, já que a fulana não era muito afeita a pagar as contas. Acontece que foi um golpe de sorte: ela pagou, minha mãe cumpriu a promessa feita, e eu ganhei minha Susi jogadora de futebol.

Diferente das Barbies, que às vezes tinham um destino trágico de terminarem com o pescoço solto, o da Susi era resistente, feito da mesma borracha da cabeça, o que eliminava em 99,9% o risco de acabar com uma cabeça pendurada pro lado — ou até mesmo acéfala. A única forma de corrigir esse mal era um procedimento que demandava encurtar o tamanho do pescoço ao enterrar a cabeça mais para baixo. Foi o que aconteceu com a minha primeira Barbie, que tinha os cabelos ruivos e pesados — coitada, não escapou da fatídica sina do pescoço encurtado.

Às vezes eu queria ter um pescoço duro como o da Susi. Que me ajudasse a segurar melhor a cabeça na vertical durante o dia e na horizontal durante o sono. Na aula de yoga o professor fala em afastar o ombro da orelha, para alongar a parte do pescoço. Mas quem lembra disso enquanto sonha com o pesadelo que já é a realidade desse país?

Descobri que aperto os dentes durante o sono — ansiedade mandando aquele abraço — e a tensão na articulação da mandíbula irradia a dor pro pescoço. Passei a usar uma placa nos dentes pra dormir, o que tem ajudado bastante a evitar a dor na maioria dos dias, apesar de ter feito eu babar loucamente no começo, perseverei.

Essa noite sonhei com meus mortos. Engraçado como no sonho eles parecem vivos, com uma aura amarelada de energia ao redor, como se lutassem para não desaparecerem da memória de quem ainda deita a cabeça à noite para dormir. A vó Dina apareceu no sonho. Ela não gostava de usar travesseiro pra dormir. O cabelo, arrumado numa permanente e retocado com laquê, que era quase parte da personalidade dela, como a moldura elaborada de um quadro, repousava à noite numa toalha dobrada. Do lado, ficava uma lanterna para uma eventual falta de luz. Ela nunca reclamou de dor no pescoço. Esse fim de semana fez 10 meses que ela se foi.

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Sarah Quines

uma leitora canhota que de vez em quando escreve e que fala sobre música no canal Garimpo Sonoro no Youtube