Se acalme, meu bem, não chore

Sarah Quines
3 min readNov 5, 2018

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De dentro de algum apartamento de poucos metros quadrados em São Paulo, um saxofone entoa as notas de Summertime. Lá fora, o dia se encerra entre chuviscos e um frio que em nada lembra o verão que dá nome à música.

Summertime é uma das canções com mais covers na história da música gravada. Da ária cantada por uma soprano ao lado de uma orquestra sinfônica, a composição já foi transformada nos gêneros mais inimagináveis — do ska ao jazz, do blues ao soul. Um banco de dados na internet aponta mais de 70 mil gravações dessa música. A melodia inclusive lembra uma canção espiritual afro-americana, chamada “Sometimes I feel like a motherless child”.

George Gershwin escreveu Summertime para a ópera Porgy and Bess em 1935. A história foi inspirada no romance Porgy, de DuBose Heyward, também autor da letra da música. O enredo se passa no começo do século XX na cidade de Charleston, na Carolina do Sul, e traz a figura de Porgy, um mendigo deficiente físico, que se apaixona pela prostituta Bess.

A ópera foi uma tentativa inovadora de reunir as técnicas orquestrais da Europa com o jazz e o folk norte-americanos. O compositor criou uma ópera para ser interpretada apenas por atores negros. Os irmãos Gershwin (o compositor George e o letrista Ira) recusaram a exigência do Metropolitan Opera de que atores brancos atuassem com blackface (prática de colorir o rosto com carvão para interpretar personagens negros de forma estereotipada e racista). Assim, eles reuniram um elenco totalmente negro e o levaram para a Broadway em 1935. Foi só a partir da década de 1970 que a produção seria aceita como uma ópera legítima.

Em 1958, a colaboração de Louis Armstrong e Ella Fitzgerald deu origem ao disco com canções da ópera de Gershwin. Em 2001, o trabalho ganhou um prêmio Grammy Hall of Fame, categoria especial dada a gravações com no mínimo 25 anos consideradas relevantes historicamente. Summertime é a segunda faixa do lado A.

Menos de um ano depois de Louis e Ella, em 1959, Miles Davis lançou o álbum que se tornaria referência do jazz orquestrado. Gravado em quatro sessões, com seis músicas no lado A e sete no lado B, Porgy and Bess foi o resultado da parceria com o músico Gil Evans nos arranjos feitos em cima das composições de Gershwin. Summertime é a quinta faixa do lado A.

A música se popularizou como um standard do jazz, sendo interpretada ainda por outros nomes como Nina Simone, Billie Holiday, Sarah Vaughan, John Coltrane e Sidney Bechet (no momento, a minha versão favorita).

Mas a primeira vez que eu ouvi Summertime foi na voz rouca e visceral de Janis Joplin. Lançada em pleno verão de 1968, o famoso verão do amor, a versão de Janis martelou por muito tempo na minha cabeça de criança da década de 90. Summertime é a terceira faixa do lado A de Cheap Thrills.

Antes de Janis, os ingleses do The Zombies já tinham gravado a música de Gershwin num arranjo despretensioso em 1965. Uma das versões mais recentes e não menos brilhante é a de Willie Nelson, gravada em 2016, que trouxe uma cadência suave acompanhada por uma harmônica.

Existe algo em Summertime que embala os ouvidos de quem a escuta. A sensação não vem à toa, já que o compositor teria se inspirado numa canção de ninar ucraniana quando escreveu a melodia. É como a força de um abraço fraterno que tenta acalentar o absurdo da existência. E que diz “se acalme meu bem, não chore”.

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Sarah Quines

uma leitora canhota que de vez em quando escreve e que fala sobre música no canal Garimpo Sonoro no Youtube