Mulheres cantam o blues

Sarah Quines
6 min readMar 7, 2021

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Barbara Lynn antes e hoje

Enquanto nomes como Aretha Franklin e Etta James se tornaram figuras femininas conhecidas na música soul e no blues, muitas outras cantoras, compositoras e intérpretes caíram no esquecimento. Algumas não tiveram o devido reconhecimento na sua época — seja por terem de abrir mão do trabalho na música por conta de filhos, seja porque a gravadora não divulgava o trabalho da mesma forma que fazia com artistas homens brancos ou não pagava os royalties das músicas. As tentativas de volta a carreiras interrompidas foram em sua maioria mal sucedidas. Apesar de render alguns prêmios de reconhecimento tardio, elas nunca conseguiram retomar o ponto de onde pararam.

Os serviços de streaming de música têm tornado possível resgatar algumas dessas artistas. Destaco abaixo seis mulheres negras que cantam o blues (embora não apenas, a maioria também flertava com o gospel, rock’n’roll, soul e jazz) a partir do que mais ouvi no ano passado.

Wynona Carr (1923–1976)

Wynona Carr começou como cantora gospel e criou o quinteto The Carr Singers em 1945. Insatisfeita com o rumo gospel da carreira, deu uma guinada em direção ao rhythm’n’blues e ao rock’n’roll nos anos 50, com a maioria das composições escritas por ela. O uso de metáforas e temas nas letras, que já aparecia nas músicas gospel, se mantém em canções consideradas inovadoras como Ding Dong Daddy. O vocal contralto e rouco se encaixou muito melhor na nova fase como pode ser conferido na faixa de 1956, Please Mr. Jailer, que depois seria redescoberta numa versão para a trilha do filme Cry Baby. No meio dos anos 50, quando a carreira deslanchava, Wynona pegou tuberculose e teve que pausar o trabalho por dois anos, o que a fez perder o contrato com a gravadora em 1959. No começo dos anos 60 gravou um álbum que não engatou. Influenciada por Sister Rosetta Tharpe, foi chamada de versão feminina de Little Richard mas, ainda assim, não foi reconhecida como deveria e voltou à cidade onde nasceu, Cleveland, em Ohio. Com uma saúde debilitada, sofreu de depressão e morreu aos 52 anos.

Ruth Brown (1928–2006)

Ruth Brown já cantava no coral da igreja aos 4 anos. Aos 17, fugiu de casa com um trompetista com quem se apresentava em bares e clubes e que acabou se tornando seu marido. O contrato com a gravadora Atlantic Records foi feito da cama do hospital onde ficou internada por nove meses depois de sofrer um acidente de carro. Nos anos 50, emplacou o primeiro hit, So long, que rendeu a ela o título de rainha do rhythm’n’blues. Em 1959, lançou o hit I don’t know. Nos anos 70 e 80, lutou pelo direito dos músicos em relação a contratos e royalties, o que levou à criação da Fundação Rhythm and Blues. Venceu um prêmio Tony pela participação no musical da Broadway “Black and Blue” e ganhou um Grammy pelo conjunto da obra em 2016, dez anos depois de morrer de um ataque cardíaco aos 78 anos.

Lavern Baker (1929–1997)

Lavern Baker começou cantando nos clubes de Chicago em 1946. Assinou contrato com a Atlantic Records em 1953, e o primeiro hit, Tweedle Deel, veio dois anos depois. Gravou um álbum tributo a Bessie Smith e fez trabalhos na televisão e em filmes. Em 1959, no álbum Blues ballads, gravou Love me right. Nos anos 60, pegou broncopneumonia ao voltar do Vietnã, onde se apresentou para os soldados americanos. Foi se recuperar na base naval nas Filipinas, e seguiu lá como diretora de entretenimento da Marinha até 1988, quando voltou aos Estados Unidos para se apresentar no Madison Square Garden na comemoração de 40 anos da gravadora Atlantic.

Nos anos 1990, estreou na Broadway como substituta de Ruth Brown no musical “Black and blue”, e fez trilha sonora de filmes como Shag e Dick Trace. Diabética, teve as duas pernas amputadas, mas não deixou de se apresentar por isso. Foi a segunda artista mulher solo a entrar para o Rock and Roll Hall of Fame, depois de Aretha Franklin. Morreu aos 67, vítima de um AVC.

Esther Phillips (1935–1984)

Esther Phillips nasceu no Texas e, aos 14 anos, venceu um concurso de talentos num clube local de blues. Lançou o primeiro hit, Double crossing blues, em 1950 junto de Johnny Otis. O auge da carreira foi conturbado pelo vício em heroína. Dona de um vibrato agudo comparável a Dinah Washington, retornou nos anos 60, quando assinou com a Atlantic Records, e fez um cover de And I love her, dos Beatles, que ficou bastante conhecido. A dependência a fez ser internada novamente. Indicada quatro vezes ao prêmio Grammy na década de 1970, morreu aos 48 anos de insuficiência hepática e renal devido ao longo período de abuso de drogas.

Betty Everett (1939–2001)

Betty Everett já cantava música gospel e tocava piano aos nove anos na igreja. Aos 18, deixou para trás o delta do Mississipi em busca da carreira musical em Chicago. O primeiro hit veio em 1963 com You’re no good, mas fez ainda mais sucesso com The Shoop shoop song, que ajudou a caracterizar o som de Chicago nos anos 60, e que foi regravado em 1990 numa versão da Cher para a trilha do filme Minha mãe é uma sereia. Nos anos 70, gravou um cover de God only knows dos Beach Boys. Apesar de ter gravado nove álbuns de estúdio, ficou lembrada apenas pelos dois primeiros singles. O material dela foi destruído num incêndio em 2008 que consumiu parte dos arquivos do estúdio da Universal. Nos anos 1990, entrou numa batalha para recuperar os royalties de hits lançados 30 anos antes, e acreditava que o melhor de sua carreira ainda estava por vir. Morreu aos 61 anos de um ataque cardíaco.

Barbara Lynn (1942 — )

Barbara Lynn nasceu no Texas, e trocou o piano da infância pela guitarra tocada com a mão esquerda. Criou a banda Bobbye Lynn and her idols, um grupo só de mulheres. Em 1962, lançou o hit You’ll loose a good thing, depois regravado por Aretha Franklyn. Foi pioneira numa época em que era raro uma mulher negra compor as próprias músicas e tocar um instrumento principal. Fez turnês com nomes como Stevie Wonder, Sam Cooke, Marvin Gaye, Otis Redding e Tina Turner. Em 1965, sua composição Oh baby ganhou um cover dos Rolling Stones. Ainda nos anos 60, assinou com a Atlantic Records, mas na década seguinte, ao se tornar mãe de três e se sentir insatisfeita com a divulgação fraca do seu trabalho pela gravadora, decidiu se afastar do cenário musical até os anos 1980. Excursionou pelo Japão em 1984, gravou um disco ao vivo, e retomou a carreira na música depois que o marido morreu. Em 1994, gravou o primeiro álbum de estúdio em vinte anos. Hoje mora na cidade onde nasceu no Texas, e em 2018 recebeu o prêmio National Heritage Fellowship, que é a maior homenagem dada pelo governo dos Estados Unidos a artistas folclóricos e tradicionais. Barbara tem 79 anos.

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Sarah Quines

uma leitora canhota que de vez em quando escreve e que fala sobre música no canal Garimpo Sonoro no Youtube