Eu não tenho medo de morrer/ eu serei libertado

Sarah Quines
3 min readMay 31, 2017

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Quando JB entrou no rio naquela quinta-feira em 1997, fazia uma noite quente. Ele chegou ali junto de Keith, depois de se perderem no caminho para o estúdio onde gravariam as músicas do segundo disco. O resto da banda ainda nem tinha desembarcado do avião. Dava tempo de dar um mergulho.

Jeff Buckley morreu no dia 29 de maio, há 20 anos

De roupa e sem ao menos tirar as botas, JB entrou no rio calmo, de águas quase estáticas. Keith ficou sentado na margem. Do rádio, a voz de Robert Plant soltava agudos em Whole lotta Love, que JB imitava enquanto avançava rio adentro. A água estava pela cintura. Um barco surgiu do nada, se aproximou e criou ondas turbulentas. Pra evitar que o rádio ficasse molhado, Keith levantou da margem e foi guardá-lo no carro. Dez minutos depois, quando voltou, JB já não estava mais ali.

Mas, naqueles dez minutos em que ficou só, em que Keith não estava mais por perto, e enquanto a correnteza o levava: qual terá sido o último pensamento de JB? Será que se deu conta de que, assim como o pai, o músico Tim Buckley, que viu uma única vez na vida, também morreria cedo? Será que se lembrou dos cafés do Greenwich Village onde tocava para ganhar uns trocados? De quando começou a tocar violão aos cinco anos de idade ou do último show feito três dias atrás? Ou do segundo disco inacabado? Será que ainda estava consciente disso tudo ou foi logo arrebatado pela força da correnteza?

Certa vez, o artista disse que suas músicas são sobre estar vivo. “O mundo todo é tão ‘anti-vida’, principalmente esse mundo comandado por homens que não querem sentar, ouvir e entender do que se trata a vida”.

Uma morte sem mistério: sem indícios de álcool, drogas ou suicídio. Fora do padrão glamourizado do rock autodestrutivo. Apenas a trágica sucessão de eventos que levou ao fim prematuro aos 30 anos. Desaparecido. JB só foi encontrado seis dias depois. “As músicas apenas saem de poemas. E os poemas às vezes saem de sonhos. Ou da realidade”. — ele disse alguns anos antes do último mergulho. Mas a voz que cantou as músicas surgidas de poemas, vindos de sonhos ou da realidade, nunca mais saiu do Mississipi.

Grace, primeiro e único álbum lançado em 1994, não vendeu o esperado na época mas, depois da morte do músico, entrou para as listas de melhores álbuns. O folk, a influência da guitarra de Jimmy Page e uma sonoridade onírica diferente de qualquer outra coisa feita nos anos 90 deram a cara do disco de estreia. Dez faixas, sete autorais e três versões. A releitura de Buckley para Hallelujah, de Leonard Cohen, é um dos raros casos em que a versão supera a gravação original.

Na letra de Grace, Buckley cantou “bem, esta é minha hora chegando, eu não tenho medo de morrer”, mas talvez tenha lembrado, naqueles últimos instantes de fôlego e de vida, enquanto se afogava, de uma canção de Bob Dylan que cantou pelo telefone num programa de rádio e que falava “Eles dizem que tudo pode ser substituído/ que toda distância não está próxima/ Assim eu me lembro de todo rosto/ De todo homem que me pôs aqui/ Eu vejo minha luz vir brilhando/ Do oeste até o leste/ Mais dia menos dia mais dia menos dia/ Eu serei libertado

https://www.youtube.com/watch?v=dqaP6LnTIUc

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Sarah Quines

uma leitora canhota que de vez em quando escreve e que fala sobre música no canal Garimpo Sonoro no Youtube