Agosto

Sarah Quines
2 min readSep 2, 2020

--

É agosto. Entro no ônibus de onde só vou sair seis horas depois. Com o trecho do avião, entre uma porta e outra o percurso tem catorze horas. Se houvesse um jeito mais direto de chegar, minhas costas agradeceriam. Mas vejo o trajeto como a abertura de um filme: os créditos iniciais passando enquanto a paisagem urbana se dissolve ao som de uma milonga ao fundo, num ritmo que permite me adaptar à nova ambientação. Prédios, viadutos, trânsito e buzinas dão lugar ao horizonte amplo, ao campo a perder de vista, à estrada vazia cortada pelo silêncio.

Domingo é dia dos pais e aniversário da mãe. Voltar passou de obrigação moral a vontade genuína (desde que garantido o retorno para a metrópole). Voltar é varrer a crosta de ruído sonoro dos ouvidos. É passar a limpo na mente o desbotado contorno das ruas ainda sem asfalto. Mas voltar é também topar com vultos de carne e osso. Pior, é se deparar com o espectro provinciano que julga, impiedoso, os desgarrados.

Os dias correm e eu engano as horas entorpecida numa nostalgia antecipada. Revisito minhas ausências. As brigas serão relevadas, as críticas ignoradas. Restam os afetos, a volta na praia, o feijão na panela. Me apego à densidade do ar que encosta na minha pele.Inspiro fundo para guardar o cheiro da casa até a próxima vinda, enquanto a vida acontece longe daqui. Borges diz que o tempo é memória e esquecimento.

Só volto em dezembro.

--

--

Sarah Quines

uma leitora canhota que de vez em quando escreve e que fala sobre música no canal Garimpo Sonoro no Youtube