A borracharia da Amaro Souto

Sarah Quines
3 min readAug 1, 2018

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Na borracharia do vô Samuel tinha uma Nossa Senhora Aparecida sem cabeça. Eu não sabia como ela tinha ficado assim, mas aquilo me fascinava: a imagem de uma santa sem cabeça provocava em mim, ao mesmo tempo, medo e crise de riso. Ela ficava dentro de um armário de madeira pintado de azul com duas portas que não fechavam direito, por isso eu tinha descoberto ela ali, espiando pela abertura, aquela figura tão acéfala quanto a mula da lenda.

A borracharia tinha um cheiro bem característico e fazia um barulho absurdo enquanto as máquinas trabalhavam. A montadora e desmontadora de pneus, a vulcanizadora, o compressor de ar, o calibrador, o martelo, a marreta. Quase uma coreografia de robôs que entregavam o produto final renovado, enquanto o rádio de pilhas sintonizado na Rádio Marajá 800 quilohertz garantia a trilha de fundo.

Eu gostava de ir lá porque me sentia no meio de muita tecnologia (ainda não tinham inventado smartphones na década de 90 e o computador demoraria uns bons anos pra chegar aos lares do interior) e gostava de explorar aquele universo que era muito diferente de todo o resto que eu conhecia. O macaco-jacaré, que eu não sabia direito como funcionava, porque fazia algum tipo de mágica (eu não sabia o que era um aparelho hidráulico) que levantava os carros enquanto meu avô parecia fazer nenhuma força descomunal pra erguer os veículos. Mas o que eu mais gostava disso tudo era quando ele manuseava cheio de maestria o macaco até o alto, com uma das netas em cima — de preferência eu.

Nas tardes quentes de sol, o calor deixava a borracharia um lugar bem abafado, que era invadido pelo canto das cigarras nas árvores da Amaro Souto. O bicheiro costumava passar por lá, com a pochete de couro puída pelo tempo carregando os sonhos de tanta gente. Sonhos mesmo, interpretados e transformados em palpites de jogo do bicho.

Quando o expediente ficava mais tranquilo, sem movimento, o vô Samuel tinha sempre um baralho de cartas na manga. Dava pra jogar uma partida rápida de escova ou truco — no baralho espanhol — que sempre me pareceu muito mais legal do que o baralho comum, já que os naipes eram mais literais (ouro eram moedinhas de ouro, por ex).

Eu não sei ao certo quando a borracharia deixou de existir. É como se ela não tivesse resistido ao passar dos anos e à fragilidade da existência humana. Eu não sei quanto tempo se passou desde que aquela sala da Amaro Souto deixou de consertar pneus e bicicletas, mas sei que neste ano vai completar 11 anos que o vô Samuel deixou de cantar truco e de bater no pife. Que ele deixou de ensinar algum novo truque na canastra — real ou suja . E que deixou de cantar emocionado alguma valsa no violão, que sempre terminava com os olhos verdes marejados de lágrimas, escondidas pelo sorriso bonachão. Hoje ele faria 89 anos.

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Sarah Quines

uma leitora canhota que de vez em quando escreve e que fala sobre música no canal Garimpo Sonoro no Youtube